Quando nos Perdemos de nós Mesmos: e o outro?
- agdagalvaopsic
- há 7 dias
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Em muitas relações, especialmente as afetivas, há um fenômeno sutil e quase invisível que começa a acontecer com o tempo: o desaparecimento de si mesmo. Não por escolha consciente, mas por um processo lento de desconexão com aquilo que nos vitaliza interiormente.
Na perspectiva de Carl Gustav Jung, esse processo inicial de desaparecimento pode estar ligado a uma inflação ou identificação excessiva com a Persona. A Persona é a máscara social, o papel que desempenhamos para sermos aceitos pelo mundo e pelo outro: a "boa esposa", a "parceira compreensiva", o "marido provedor".
Embora a Persona seja necessária para a adaptação social, o perigo reside quando o Ego (o centro da nossa consciência) acredita ser idêntico a essa máscara.
Quando nos fundimos ao papel de agradar ou de manter a harmonia a qualquer custo, sacrificamos a nossa autenticidade. Começamos a viver uma vida performática, onde o roteiro é escrito pelas expectativas alheias e não pela nossa verdade interior.
Esse "desaparecer" é, na verdade, uma dissociação: separamos quem somos de quem mostramos ser, e o abismo entre essas duas instâncias começa a drenar a nossa energia vital.
E esse processo, muitas vezes, é confundido com “falta de amor”. Mas Jung diria: “não é falta de amor, é falta de alma”. O que se esgota não é o afeto, mas o espaço interior necessário para que ele respire.
Quando dizemos que "falta alma", estamos dizendo que perdemos a conexão com o inconsciente, a fonte criativa e numinosa da vida.
O amor romântico, muitas vezes, carrega uma armadilha: a Projeção.
No início, projetamos no outro a nossa "Alma". Entregamos ao parceiro a chave do nosso bem-estar, a responsabilidade pela nossa felicidade e até mesmo o nosso sentido de valor. Quando fazemos isso, esvaziamo-nos. O outro torna-se o detentor da nossa luz.
Consequentemente, o relacionamento pode se tornar pesado, não por falta de sentimento, mas porque um dos parceiros (ou ambos) se tornou uma casca vazia, dependendo do outro para se sentir vivo.
Sem "alma" própria, tornamo-nos vampiros energéticos ou mártires silenciosos.
Começamos a desaparecer de nós mesmas quando deixamos de ouvir nossos sonhos, ignoramos os sinais do corpo, o riso vai rareando, e o silêncio, antes paz, vira peso. Até que, em algum momento, o inconsciente reage para tentar restabelecer o equilíbrio.
Os Sonhos: Quando paramos de ouvi-los, perdemos o acesso à sabedoria instintiva que reside em nós. Eles não são apenas "restos do dia", mas podem ser cartas urgentes do Si-mesmo alertando sobre a unilateralidade da vida consciente.
O Corpo: A somatização é o grito final da alma não ouvida. Se a boca cala o que a alma sente, o corpo fala através da doença. O riso que rareia é o sinal de que a "Criança Divina" interior foi exilada.
O Silêncio Pesado: Este é o silêncio da repressão, não da contemplação. É o peso de todas as palavras não ditas e de todas as emoções engolidas que foram varridas para a Sombra. A Sombra guarda tudo o que abafamos em nome do amor: nossa raiva, nosso desejo egoísta, nossa criatividade selvagem. Quanto mais densa a Sombra, mais pesado o silêncio.
Quando a alma sufoca, perdemos o caminho de volta. Não é só cansaço, é a desconexão do Si-mesmo, o centro que nos orienta na direção da nossa totalidade.
O Si-mesmo (Self) é o arquétipo central da ordem, a totalidade da personalidade que abrange tanto o consciente quanto o inconsciente. O Ego deve servir ao Self, assim como um capitão serve ao oceano. No entanto, quando nos desconectamos, o Ego tenta assumir o controle total, geralmente movido pelo medo de perder a relação.
O mundo externo continua lá, mas a ponte emocional que nos ligava a ele ruiu.
Nesse ponto, surgem os sintomas: cansaço crônico, ansiedade, insônia, sensação de estar “vivendo no automático”, sinais de burnout. O distúrbio da alma aparece quando deixamos de seguir aquilo que tem sentido para nós.
Esses sintomas são, paradoxalmente, o esforço da psique para se curar. Quando nos afastamos do que tem sentido, o inconsciente nos chama de volta; nem sempre com palavras, mas com dor.
Amor Não Basta: É Preciso Espaço Interno. Em relacionamentos, tendemos a pensar que o amor é suficiente para manter tudo vivo. Mas até o amor adoece quando não há espaço interno para o outro ser percebido como é, e para que nós sejamos inteiros ao lado de alguém.
Quando não temos espaço interno, o relacionamento deixa de ser um encontro de duas almas e passa a ser um jogo inconsciente de poder e dependência.
A verdadeira intimidade requer diferenciação. Se eu não sei onde eu termino e você começa, isso não é amor, é fusão (ou participation mystique).
Na fusão, exigimos que o outro supra nossas carências infantis. A saúde relacional exige que retiremos as projeções. Precisamos reconhecer que o parceiro não é um deus, nem um pai/mãe, nem um salvador, mas um ser humano falível. E, para suportar essa realidade, precisamos estar ancorados em nosso próprio centro.
É por isso que, antes de salvar o relacionamento, é preciso salvar a si mesmo. E salvar-se, aqui, não significa fugir. Significa retornar.
O Retorno ao Si-Mesmo: Caminho de Individuação. A psicologia analítica chama esse processo de individuação, o caminho pelo qual a pessoa se torna quem realmente é. E muitas vezes esse caminho passa por rupturas, pausas e mergulhos no inconsciente.
Não é um caminho de egoísmo, mas de responsabilidade. Tornar-se quem se é exige coragem para enfrentar a própria Sombra, para aceitar que não somos perfeitos, que temos desejos e impulsos que a nossa Persona "boazinha" condenava.
Muitas vezes, a relação afetiva entra em crise justamente para catalisar a individuação. O casamento ou namoro torna-se o vaso alquímico onde o calor do conflito nos cozinha até que a nossa essência se separe das nossas impurezas e projeções.
A terapia é um desses espaços sagrados onde a alma volta a respirar. Não porque alguém “conserta” você, mas porque você pode finalmente se escutar, se ver e se permitir ser visto.
"Permitir ser visto" significa retirar a Persona e mostrar as feridas, os medos e os desejos ocultos, sem julgamento moral, mas com curiosidade simbólica.
Quando você começa a se reencontrar, algo muda: a presença volta. A energia vital retorna. O brilho dos olhos reaparece.
Esse retorno da energia é a liberação da libido (libido, aqui, como energia psíquica vital) que estava represada na Sombra. Quando integramos o que havíamos abandonado, nos tornamos mais inteiros, mais complexos e mais reais.
E mesmo que a relação não siga adiante, você se sente inteiro de novo. Porque, no fundo, só conseguimos nos relacionar verdadeiramente com o outro quando estamos em contato com nós mesmos.
Aqui reside o paradoxo final: só podemos estar verdadeiramente com o outro quando somos capazes de estar sozinhos.
Se a relação externa terminar, é doloroso, mas não destrutivo, pois a "casa interna" está habitada. Se a relação continuar, ela se transforma. Deixa de ser uma relação de necessidade ("preciso de você para viver") e torna-se uma relação de preferência e encontro ("sou inteiro, e escolho compartilhar minha transbordância com você").
Voltar para si é um ato de amor. Talvez o maior de todos.
Em última análise, esse retorno é um ato sagrado de serviço à vida. Como Jung disse: "O privilégio de uma vida é tornar-se quem você verdadeiramente é".
Ao fazer isso, não salvamos apenas a nós mesmos, mas libertamos aqueles que amamos do peso insuportável de serem a nossa única fonte de vida.
Enfim, quando nos perdemos de nós mesmos como fica o outro?
O outro, nesses momentos, é como um mensageiro, mas a resposta nunca está nele. Está no resgate de si. Pois só quando nos reencontramos, podemos realmente encontrar o outro
Agda Galvão
Psicoterapeuta Junguiana



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