Trauma x Ansiedade: o corpo que não consegue descansar
- agdagalvaopsic
- 9 de out.
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Na semana passada falamos sobre como o trauma pode se manifestar nos sonhos. Hoje vamos olhar para outro espaço onde ele também pode se revelar: na ansiedade.
A ansiedade, neste contexto, não é o trauma em si, mas uma das reações possíveis a ele.
Quando uma experiência dolorosa ultrapassa a capacidade de assimilação emocional, parte dessa energia psíquica permanece presa no corpo e na mente. Mais tarde, ela pode se expressar como alerta, inquietação ou medo constante. É o corpo tentando se defender de algo que já passou (o evento traumático), mas que ainda não foi compreendido.
O trauma é uma resposta natural a eventos que excedem a capacidade de enfrentamento emocional de uma pessoa.
Ele pode surgir após experiências de abuso físico, emocional ou sexual, perdas significativas, acidentes, doenças graves, desastres naturais, violência urbana ou negligência. Também pode se originar de vivências prolongadas de instabilidade afetiva e inseguranças na infância.
Mais do que um fato em si, o trauma é definido pelo que fica aprisionado dentro de quem o viveu: fragmentos de memória, sensações corporais, medos e emoções não elaboradas.
Cada indivíduo responde de forma singular, dependendo de sua história, sensibilidade e da rede de apoio que possui.
O trauma altera a percepção de mundo. Ele quebra a confiança na vida e cria uma sensação de que o perigo pode retornar a qualquer momento. Por isso, mesmo após o fim do evento traumático, o corpo e o inconsciente continuam funcionando em estado de alerta.
Após uma experiência traumática, o sistema nervoso pode permanecer hiperativado. É como se o corpo ainda esperasse que algo ruim voltasse a acontecer. O coração acelera, a respiração encurta, o sono se torna leve e a mente gira em torno de possíveis ameaças. Essa reação, que deveria ser temporária, transforma-se e fica em estado permanente.
Nesse estado, a ansiedade aparece como uma tentativa de controle.
O inconsciente acredita que, se a pessoa se mantiver atenta o tempo todo, poderá evitar novas dores. É o medo travestido de vigilância.
Dos ensinamentos junguianos sabemos que: “aquilo que não vem à consciência retorna como destino”.
A ansiedade pós-traumática é justamente esse retorno: a energia psíquica tentando emergir e ser reconhecida.
Quando não há espaço de escuta, o corpo assume a tarefa de expressar o que a psique ainda não conseguiu dizer. Ele fala através da agitação, da tensão, da insônia e da sensação de estar sempre à beira de um colapso.
Um dos sinais mais evidentes da ansiedade traumática é a hipervigilância, ou seja, um estado de atenção constante, involuntária, a qualquer sinal de perigo.
Depois de um trauma, o cérebro, especialmente a amígdala (região responsável pela resposta ao medo), fica superativado. Mesmo em ambientes seguros, o corpo interpreta ruídos, olhares ou gestos como ameaças. O organismo permanece em “modo de sobrevivência”, pronto para reagir.
Com o tempo, esse mecanismo de defesa se transforma em prisão. O corpo não consegue descansar. O sono é leve, o coração vive acelerado e o prazer é substituído pela expectativa do desastre. É como se a pessoa estivesse permanentemente com o pé no freio e no acelerador.
Na visão simbólica junguiana, essa hipervigilância revela que o complexo traumático permanece autônomo e ativo. Uma parte da psique continua aprisionada no momento do trauma, reagindo fora do controle do ego consciente.
O tempo interno fica congelado, e o corpo se torna o guardião da memória que ainda não pôde ser elaborada, harmonizada.
A ansiedade associada ao trauma pode se expressar de várias formas, dependendo da estrutura psíquica e da história pessoal de cada indivíduo.
Entre as mais comuns estão:
1. Evitação e retraimento: A pessoa passa a evitar lugares, pessoas ou situações que possam lembrar o trauma. Esse comportamento traz alívio momentâneo, mas restringe a vida e reforça a ideia de que o mundo é perigoso.
2. Revivências e flashbacks: Em momentos de estresse, imagens, sons ou sensações corporais do evento traumático podem retornar, acompanhados de forte ansiedade. É a psique tentando “recontar” o que ainda não foi simbolizado.
3. Desconexão emocional: Alguns indivíduos desenvolvem uma espécie de anestesia afetiva. Sentem-se distantes de si mesmos e dos outros, como se estivessem “assistindo” à própria vida de fora. Essa dissociação é um recurso de autoproteção que impede o contato direto com a dor.
4. Sintomas físicos: A energia psíquica não simbolizada busca expressão através do corpo. Falta de ar, palpitações, tensão muscular, gastrite, dores e insônia são manifestações frequentes. O corpo torna-se o palco do que a mente ainda não conseguiu traduzir.
5. Dificuldade de confiar e de se entregar: O trauma gera uma crença inconsciente de que o mundo não é seguro. Amar, relaxar e se entregar passam a representar risco. A ansiedade surge sempre que há possibilidade de entrega, pois vulnerabilidade lembra perigo.
Essas manifestações mostram que a ansiedade pós-traumática é a tentativa do organismo de manter-se protegido, mesmo quando o perigo já passou. O corpo continua reagindo, e a psique busca, desesperadamente, reorganizar-se.
Agora vejamos o paradoxo da proteção: a ansiedade, nesse contexto, é paradoxal. Ao mesmo tempo em que protege, aprisiona. Mantém o indivíduo vivo, mas impede que ele viva plenamente. O corpo se acostuma ao estado de alerta, e o sistema nervoso, exausto, já não distingue o real do imaginado.
É nesse ponto que o tratamento se torna fundamental. A função da terapia é ajudar o corpo e a mente a reencontrarem o descanso e a reconhecerem novamente o estado de segurança. É um processo lento, de reaprendizado fisiológico e simbólico.
O trauma rompe o sentimento de segurança e confiança. Por isso, a transformação e a melhora emocional precisam ocorrer dentro de vínculos seguros, tanto com profissionais quanto com pessoas próximas.
O profissional de saúde mental oferece um ambiente protegido e estruturado, onde a experiência traumática pode ser revisitada com segurança; a pessoa aprende a nomear o que sente, a compreender suas reações e a transformar o medo em narrativa e sentido.
Na linguagem de Jung, o psicoterapeuta atua como mediador entre o ego ferido e o Self, sustentando o processo até que a psique encontre uma nova forma de equilíbrio.
O apoio familiar e social também é vital. O trauma frequentemente isola, gera vergonha e desconfiança. Quando alguém oferece presença, paciência e escuta sem julgamento, o indivíduo começa a acreditar novamente na possibilidade de vínculo seguro.
A recuperação é mais profunda quando há uma integração entre técnica e afeto: a terapia oferece estrutura e método, o amor e o acolhimento oferecem chão.
Temos que pensar também em trauma, consciência e transformação; para tanto lembremos Jung quando afirmava que aquilo que não se torna consciente continua a dirigir nossa vida.
No trauma, essa verdade é literal: o que não é elaborado, repete-se. O que é escutado e simbolizado, transforma-se.
Por isso, o processo terapêutico busca devolver forma e significado ao que ficou fragmentado.
A ansiedade, antes vista apenas como sintoma, passa a ser compreendida como mensageira do inconsciente, pedindo atenção e cuidado.
Quando a energia aprisionada encontra palavra, gesto, sonho ou imagem, ela deixa de ser ameaça e se converte em força vital. A alma entende que o perigo passou, e o corpo pode, finalmente, descansar.
Disso tudo, podemos concluir que a ansiedade pode ser uma das consequências do trauma, uma resposta do corpo e da psique que ainda buscam reorganização. Ela não é fraqueza, mas um sinal de que a vida interna está pedindo espaço para se curar.
Com apoio terapêutico, compreensão e vínculo humano, a energia do medo pode se transformar em consciência. E aquilo que um dia gritou dentro do corpo, encontra expressão na palavra e no significado.
Entender e transformar o trauma é reconectar-se com a vida, com o mundo, com o corpo e com o próprio coração. Quando a alma encontra linguagem, o corpo entende que o perigo passou, os sintomas físicos cessam e ele, enfim, consegue descansar; e a vida pode seguir...
Agda Galvão
Psicoterapeuta Junguiana



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