O olhar coletivo: a beleza plural refutada Reflexão junguiana sobre o preconceito de peso (weight bias)
- agdagalvaopsic
- 25 de set.
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O weight bias, ou preconceito de peso, é dirigido a pessoas com base em seu corpo — especialmente àquelas consideradas acima do peso ou fora dos padrões estéticos dominantes.
Ele se manifesta em piadas, comentários depreciativos, discriminação no ambiente de trabalho, exclusões sociais e até mesmo em situações de atendimento médico.
Esse preconceito vai além da aparência: provoca impactos profundos na saúde mental e na qualidade de vida. Pessoas com corpos maiores enfrentam, desde a infância até a vida adulta, estereótipos, bullying, estigmas e exclusões.
Isso ocorre na escola, nas relações interpessoais, no mundo do trabalho — onde muitas vezes têm menos oportunidades — e até na área da saúde, marcada por abordagens reducionistas.
A mídia, por sua vez, reforça imagens negativas que alimentam esse ciclo. O resultado é um peso emocional e físico que limita vidas e reduz possibilidades.
É importante lembrar que a fixação contemporânea pela magreza não é um dado natural, mas um fenômeno cultural relativamente recente. Durante séculos, corpos mais cheios foram associados à abundância, fertilidade e prosperidade. Apenas a partir do século XX, com a ascensão da indústria da moda, da publicidade e, mais tarde, das academias e dietas de consumo em massa, consolidou-se o ideal de um corpo magro como sinônimo de beleza e sucesso.
Esse processo histórico cristalizou preconceitos e naturalizou padrões que hoje parecem inquestionáveis, mas que são construções culturais. O corpo passou a ser mercadoria e vitrine, e nesse movimento o preconceito de peso ganhou ainda mais força, sendo internalizado como verdade coletiva.
Na psicologia junguiana, o corpo não é apenas biologia: é também símbolo vivo da psique. O inconsciente se manifesta através de imagens, sonhos, sintomas e formas. Nesse sentido, o preconceito contra corpos maiores revela algo mais profundo — a recusa da sociedade em olhar para sua própria sombra coletiva.
O corpo maior nos lembra do prazer, da abundância e dos limites. O corpo fora do padrão expõe nossa obsessão pelo controle e pela perfeição.
E o preconceito projeta nos outros nossos próprios medos: da vulnerabilidade, da imperfeição e até da morte.
Para Jung, aquilo que é rejeitado na consciência retorna como sombra. Assim, quando a cultura marginaliza o corpo maior, está na verdade rejeitando aspectos essenciais da vida que não consegue integrar: o excesso, o instinto, o prazer, a entrega ao fluxo vital. O preconceito contra o corpo é também um sintoma de uma cultura que teme perder o controle.
Até mesmo Afrodite, a Deusa do Amor e da Beleza, foi aprisionada em padrões irreais. O arquétipo que deveria celebrar a sensualidade e a diversidade acabou reduzido a uma forma única, estreita e excludente.
O preconceito de peso é, nesse sentido, uma mutilação simbólica: ele distorce a imagem da deusa e transforma a beleza em algo inacessível, restrito a medidas artificiais. Em sua mitologia, Afrodite nasce da espuma do mar — símbolo da vida que transborda, da fertilidade e da beleza inesperada que brota do mistério. Essa imagem nos recorda que a verdadeira beleza não é moldada por métricas artificiais, mas emerge da vitalidade e da autenticidade da existência.
Resgatar Afrodite em sua essência é compreender que a beleza é plural, pulsante e vital. Sua verdadeira energia não está em um corpo ideal, mas no brilho da vida que cada pessoa carrega — seja no prazer de existir, na autenticidade ou na capacidade de amar e ser amada em sua totalidade.
Na era do Instagram, TikTok e filtros digitais, o corpo virou vitrine. O bombardeio de imagens perfeitas reforça o mito de que só vale quem se encaixa em um padrão irreal.
A comparação constante corrói a autoestima. O corpo real passa a ser percebido como inadequado. A cultura da performance sufoca a espontaneidade.
Pesquisas recentes já mostram que o uso intenso das redes sociais está relacionado ao aumento de sintomas de ansiedade, depressão e distorção da autoimagem, especialmente entre jovens e adolescentes.
O inconsciente coletivo, assim, passa a viver sob o jugo de um ideal fantasmático, onde a vida real nunca parece suficiente. Apesar disso, surgem movimentos de resistência, como o body positivity e o body neutrality, que buscam devolver dignidade ao corpo, lembrando que ele é muito mais do que aparência.
Jung dizia: “Não nos tornamos iluminados ao imaginar figuras de luz, mas sim ao tornar consciente a escuridão.” Curar o preconceito de peso significa iluminar essa sombra cultural e transformá-la. Isso exige confrontar a sombra coletiva e reconhecer que o preconceito é social, não individual.
Requer integrar o corpo como símbolo, enxergando-o como expressão única da vida. E convida à reconciliação com a imagem, transformando a relação com o corpo em aliança, não em guerra.
Mas como transformar esse olhar? Uma cultura inclusiva precisa compreender que enfrentar o preconceito ligado ao peso é parte essencial de qualquer proposta séria de diversidade, equidade e inclusão. Promover espaços onde todas as pessoas sintam que pertencem e possam se expressar de forma autêntica fortalece não apenas os indivíduos, mas também a coletividade.
A revisão de políticas institucionais, o incentivo a práticas educativas e a criação de grupos de apoio voltados à positividade corporal são caminhos concretos para cultivar ambientes mais abertos, respeitosos e solidários.
E, para além do coletivo, há também o trabalho íntimo e pessoal de reconciliação consigo. Pequenos atos podem nutrir esse processo de transformação. Escrever uma carta de gratidão ao próprio corpo, reconhecendo tudo o que ele sustenta. Olhar-se no espelho por alguns minutos, respirando fundo, apenas em presença, sem críticas. Dançar ou se movimentar livremente, não com foco estético, mas como celebração da vitalidade.
E, caso haja o desejo de emagrecer, buscar caminhos saudáveis, acompanhados por profissionais competentes, sem cair na armadilha da autocrítica destrutiva. Esses gestos simbólicos e concretos podem ser sementes de uma nova forma de estar no mundo, onde o corpo é aliado e não inimigo.
O preconceito de peso é uma ferida coletiva que mostra nossa dificuldade em aceitar a diversidade, o prazer e a imperfeição.
Quando nos reconciliamos com o corpo, vemos nele não um obstáculo, mas um templo da alma, veículo da psique e expressão única do Self.
Curar essa ferida é devolver ao corpo sua dignidade simbólica, reconhecer que nele habita a potência da vida em toda sua diversidade. E quando finalmente libertarmos Afrodite das correntes modernas, talvez possamos reencontrar a beleza em sua essência: não a beleza que exclui, mas a beleza que floresce em todos os corpos.
O corpo não é problema. O problema é o olhar coletivo que ainda não aprendeu a amar a pluralidade da existência.
Agda Galvão
Psicoterapeuta Junguiana



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