Quando a Montanha Silencia a Vida: o Luto pela Perda de uma Filha ou Filho
- agdagalvaopsic
- 25 de jun.
- 7 min de leitura

Na última semana, uma jovem brasileira chamada Juliana Marins, de apenas 26 anos, perdeu a vida tragicamente durante uma trilha no Monte Rinjani, um vulcão ativo na Indonésia.
Juliana era uma dessas almas que parecem dançar com a vida — publicitária, dançarina, mochileira. Alguém que seguia os próprios passos com coragem e liberdade.
O acidente ocorreu no dia 20 de junho de 2025, quando Juliana escorregou em uma parte íngreme da trilha e caiu de uma altura de aproximadamente 300 metros. Após dias de buscas intensas, seu corpo foi encontrado preso em uma encosta e resgatado apenas no dia 25. Uma vida jovem interrompida. Uma mãe, um pai e uma irmã enlutados. Um país em silêncio.
Não conheci Juliana pessoalmente, mas ao saber de sua história, senti o peso simbólico de sua partida. É sobre esse luto — essa dor que não tem nome — que escrevo hoje, em homenagem a Juliana e a todas as mães, pais e irmãos que, em algum momento, foram atravessados por essa dor inominável: a de perder alguém insubstituível.
A morte de um filho ou filha nos lança em uma noite escura da alma. É uma inversão do tempo. Um absurdo biológico. Um silêncio sem borda, sem limites; um silêncio que engole tudo.
O luto é mais do que um processo emocional. Não é exagero pensá-lo como uma iniciação trágica — um chamado brutal à descida: à sombra, ao caos, ao vazio.
Quando perdemos um filho, somos lançados no território da Sombra: aquela parte da psique onde se escondem nossas dores mais primitivas, as emoções que não conseguimos nomear, o terror de continuar vivendo com um buraco no centro da alma.
A Sombra, segundo Jung, não é algo a ser vencido, mas integrado. No luto, ela pode aparecer com força: culpa, raiva, incredulidade, sensação de injustiça, desejo de desaparecer junto. Dar lugar a esses sentimentos, sem censura, é um ato de profunda humanidade.
Ao olhar a imagem de Juliana — sua juventude, seu sorriso, sua coragem — algo em nós se move. A morte dela não é apenas um fato. É um símbolo. É a queda — e a espera por um socorro que nunca chegou — de uma filha que buscava o alto: a cratera do vulcão — e terminou envolvida pelo abismo.
O inconsciente coletivo pode ler isso como um mito: a filha que não volta da montanha. A Perséfone que não retorna da descida. A oferenda involuntária aos deuses do fogo e da terra.
E nos perguntamos: como fica a mãe?
A Mãe Arquetípica — em cada mulher que gerou, cuidou ou amou — sente esse luto como um eco ancestral, um grito gutural da alma. E talvez seja por isso que a história de Juliana não nos deixa ilesos.
Como Deméter diante da perda de Perséfone, muitas mães mergulham na escuridão quando um filho parte. O mundo perde o viço. A alma se recusa a florescer. Mas, aos poucos, com dor e amor, novos ciclos podem começar — e a vida, ainda que transformada, pode voltar a pulsar. Forças ocultas, dons antes adormecidos, outra forma de amar — tudo isso pode emergir da escuridão.
E o pai?
Se a dor da mãe costuma ser visível — por sua conexão corporal, simbiótica e cultural com o filho —, a dor do pai muitas vezes se recolhe no silêncio. Mas ela está lá. E é abissal.
O pai arquetípico pode representar a ordem, o eixo, a estrutura. Ele é aquele que sustenta, protege, provê. Quando a perda acontece, esse arquétipo também treme. E muitas vezes, o homem — ao não encontrar um lugar simbólico legítimo para sua dor — tenta seguir em frente de forma endurecida, fragmentando-se por dentro.
O luto do pai pode se manifestar como raiva, negação, hiperatividade, ausência emocional — ou até mesmo como um colapso silencioso. É um momento em que a força interna desse homem, sua presença estruturante e protetora, foi profundamente ferida pela ausência, pelo não ter podido evitar, pelo não ter tido controle.
Se não for acolhido, o pai pode se isolar não apenas do mundo, mas de si mesmo.
Mas quando se permite sentir — ainda que em silêncio —, ele pode encontrar no próprio sofrimento uma via de reintegração: uma força que ama sem precisar proteger, que desaba sem se destruir, que permanece mesmo diante do irreparável.
E a irmã?
No luto familiar, muitas vezes o sofrimento da irmã ou do irmão é o mais silencioso — não porque dói menos, mas porque raramente encontra lugar.
Enquanto os pais estão tomados pela devastação da perda, os irmãos, por vezes, se recolhem. Carregam não só a dor, mas também o peso de tentar manter-se firmes por amor aos que restaram.
Perder uma irmã é perder parte da própria história. A irmã é espelho, é cumplicidade, é testemunha da infância. Com ela, vão também as piadas que ninguém mais entende, os segredos que não podem ser ditos, os afetos construídos fora das palavras.
Na psicologia simbólica, a figura da irmã pode representar um elo sagrado entre o eu e a alma coletiva da família. Ela pode ser ponte, sombra, provocação, proteção — tudo ao mesmo tempo. E por isso, sua ausência desorganiza não só o afeto, mas também a estrutura interna de quem fica.
Quando a irmã se vai, algo em nós se quebra. E, por vezes, é preciso recriar a própria identidade: aprender a viver sem a outra metade do riso, da memória e do olhar.
Para a irmã de Juliana — e para todos os irmãos e irmãs que ficaram —, deixo aqui um espaço de honra. Que sua dor encontre voz. Que sua saudade encontre gesto. Que sua alma encontre forma de continuar — mesmo sem a presença física de quem partiu.
Um de meus lutos...
No consultório e na vida, aprendi que há dores que não cabem nas palavras. Entretanto, podem caber em um gesto simbólico: uma carta escrita, uma vela acesa, uma foto no altar.
Jung dizia que o símbolo tem o poder de religar opostos — entre eles, menciono: vida e morte, presença e ausência, amor e dor.
Há seis anos, passei pela perda de um irmão que, para mim, era mais do que irmão — era um filho. Um ser de luz, totalmente desprovido de saúde, a quem dediquei 33 anos de cuidados e amor. Esse luto, para mim, foi uma árdua e longa travessia arquetípica.
O luto como portal de transformação
Talvez você, que me lê agora, tenha perdido uma filha ou um filho. Ou uma parte de si.
E se foi uma parte de você que se perdeu — um afeto, um vínculo, um tempo que não volta — saiba que essa dor também importa. Algumas perdas não têm nome, nem caixão, nem rito. E ainda assim, te atravessam por inteiro.
Ainda assim merecem ser sentidas, cuidadas, honradas. Porque toda perda real deixa ausência. E toda ausência pede escuta.
Então, permita-se sentir. Chorar. Gritar. E, quando for possível, dar forma simbólica à sua dor.
A alma precisa de rituais para continuar.
E o luto, quando respeitado em sua profundidade, pode se tornar um portal de transfiguração.
A psique, diante da perda, pode não suportar. Pode fragmentar.
Mas o inconsciente começa a trabalhar — por imagens, símbolos, sonhos — na tentativa de dar contorno ao que não tem explicação.
Jung nos lembra que: “O ser humano precisa lidar com o problema do sofrimento... Mas o sofrimento precisa ser superado — e a única forma de superá‑lo é suportá‑lo."
A dor da perda pode se tornar um rito de passagem — não imposto pela vontade, mas pela própria vida. É como se a psique fosse levada à beira de um vulcão interno, onde tudo aquilo que conhecíamos se dissolve na lava do inconsolável.
Mas esse sofrimento, se acolhido, pode ser transformador.
Atravessar o luto é mergulhar em uma espécie de alquimia psíquica, onde o que queima também purifica. A perda, por mais devastadora que seja, pode se tornar solo fértil para uma nova forma de ser, de sentir e de amar.
A trilha que continua
Na perspectiva junguiana, o inconsciente fala por símbolos. O luto, por vezes, só encontra expressão por meio daquilo que não se pode dizer em palavras: sonhos, imagens, gestos silenciosos.
Essas práticas não apagam a dor, mas podem dar contorno à ausência — e ajudam a alma a continuar o diálogo com o que foi perdido.
O luto pode se tornar uma via de aproximação com o Self — o “eu mesmo”, o centro organizador da psique. Muitas vezes, depois de perder um filho, a vida parece ter perdido o eixo. Entretanto, em sua sabedoria profunda, a alma busca uma nova centralidade.
Não se trata de “superar”, mas de incluir a dor como parte de quem somos. E com o tempo — muito tempo — talvez a vida volte a pulsar. De forma diferente. Mais silenciosa. Mas não menos verdadeira.
Para Juliana, e por todas as Julianas
Juliana morreu diante da grandeza de uma montanha e à espera de um socorro que nunca chegou. O que, para nós, é tragédia — talvez, na linguagem da alma — seja um símbolo de ascensão. De retorno à casa maior.
Que seu nome seja lembrado como o de quem ousou caminhar — fora das rotas previsíveis, em direção à beleza e ao mistério.
E que sua história nos ajude a falar sobre o luto que tantas famílias vivem em silêncio — sem palavras, mas com o coração cheio de um amor que não pôde permanecer.
A dor de perder um filho não tem consolo. Mas pode encontrar ressonância. E talvez isso seja, por si só, uma forma de continuar — juntos, humanos, imperfeitos, tocados por algo maior.
Juliana nos lembra que a vida é frágil, sim. Mas também é vasta. E mesmo interrompida, sua trilha continua — agora, dentro de nós.
Agda Galvão
Psicoterapeuta Junguiana
Em tempo: Na foto publicada, Juliana Marins (2000–2025) - in
Seu sorriso e sua coragem seguem como símbolo de liberdade, beleza e amor.



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